segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Panorama pós-eleições: coalizão socialista aprova programa de governo e orçamento para 2010


O placar nunca foi tão apertado, mas em setembro a coalizão socialista conseguiu ganhar dos conservadores e garantir mais 4 anos de mandato com uma maioria espremida de 50,3% dos votos no Parlamento (Stortinget). Do outro lado do espectro político, os conservadores amargam a derrota, mas com um gostinho de vitória pelo aumento de popularidade dos dois maiores partidos de direita, Høyre (Conservadores) e Fremskrittpartiet (Progressistas). No balanço geral, os conservadores cresceram; e a coalizão socialista tende a ficar um pouco mais conservadora também. Dos três partidos da coalizão, Ap é o maior, de longe, e foi o grande vencedor da eleição como um todo; os outros dois – SV, partido socialista de esquerda e Sp, partido dos agricultores - perderam votos em relação a eleição passada, portanto estão ainda menores do que o irmão maior, Ap.
A correlação de forças dentro da coalizão socialista tende a piorar para os ambientalistas em geral. E isso vem ficando claro à medida que o governo começa a trabalhar. O primeiro episódio foi a disputa pela escolha da equipe ministerial. Kristine Halvorsen, do SV, antes ministra da fazenda, não conseguiu manter o cargo: virou ministra da educação. A Fazenda foi para o Ap (Sigbjørn Johnsen, ex-ministro da fazenda no governo Brundtland III 90-96).
O segundo momento em que foi testada a nova correlação de forças políticas dentro da coalizão foi a elaboração da nova plataforma de governo, expressa num documento chamado Soria Moria II (a primeira versão corresponde ao programa de governo do primeiro mandato).
Uma das principais conquistas dos ambientalistas, puxada pelo SV, foi a não exploração de petróleo nas regiões de Lofoten e Vesterålen, a maior questão ambiental no país durante a campanha eleitoral. Claro, o fato de o novo governo não dizer que vai explorar não significa que isso não possa vir a ocorrer no futuro. Ainda mais considerando que o novo orçamento inclui grande volume de recursos para pesquisa dirigida a exploração petrolífera na região. Portanto, por enquanto, só vale pesquisar, mas não explorar.
Na política climática, o governo assume a meta de 10% sobre Kyoto, podendo chegar a 40% se isso contribuir para um acordo climático global que inclua os países chave. O governo também se compromete a trabalhar para que as florestas façam parte do novo acordo. O entendimento do ministério de meio ambiente é de que a Noruega, na conta climática global, não é um país relevante em termos de emissões, razão por que deveria focar mais em investir em reduções significativas, no menor tempo possível – e nesse caso o melhor custo-benefício e investir na proteção das florestas. O que não está dito lá é o que representa a maior derrota dos ambientalistas dentro da nova coalizão: um dos principais argumentos do SV durante a campanha eleitoral é a necessidade de a Noruega reduzir emissões domésticas, expondo a contradição do seu papel como liderança ambiental mundial e sua dependência da indústria de petróleo. Outra questão divergente dentro do governo, entre SV e Ap, diz respeito à possibilidade de computar as reduções resultantes dos investimentos fora na conta da Noruega: SV é contra, mas Ap é mais cauteloso. A plataforma Soria Moria II só resvala no assunto dos cortes domésticos, e dá abertura para que o que for reduzido fora seja também contabilizado dentro – afinal, difícil imaginar que a Noruega consiga reduzir até 40% em relação a 1990 apenas domesticamente, sem computar a conta das florestas. Segue uma tradução tosca do trecho sobre clima do documento:

Para evitar que a temperatura na terra aumente mais de 2 graus em relação ao período pré-industrial, as emissões globais devem diminuir entre 50 e 85% até 2050. Até 2020 devem os países industrializados reduzir suas emissões entre 25 e 40%, enquanto o aumento das emissões em países em desenvolvimento devem ser limitadas. As emissões globais precisam ser reduzidas no máximo a partir de 2015. O governo tem como objetivo de longo prazo que a cada ser humano na terra seja garantido o mesmo direito de emitir gases efeito estufa.
Para resolver os desafios climáticos é preciso cooperação internacional. A Noruega trabalhará por um acordo climático internacional mais compreensivo e ambicioso, que sucederá o protocolo de Kyoto. O governo entende portanto que o acordo deve assegurar que as emissões globais sejam fortemente reduzidas de forma a que o aumento da temperatura na terra não exceda 2 graus C.
O governo trabalhará por um acordo climático que comprometa os países ricos a pagar por suas próprias reduções de emissões bem como contribuir para o financiamento da redução de emissões em países pobres. Isso enfatiza a importância de que um acordo climático futuro seja baseado em mecanismos flexíveis que permitam que países ricos possam financiar redução de emissões em países pobres. É decisivo que consigamos viabilizar reduções altas rapidamente, ao mesmo tempo em que precisamos desenvolver novas tecnologias que possam garantir reduções de emissões em longo prazo. O trabalho da Noruega contra o desmatamento em países em desenvolvimento pode contribuir para reduções elevadas e em curto prazo. Concomitantemente, o governo continuará e fortalecerá o trabalho com tecnologias de captura e depósito de carbono, de forma a que possam se tornar comercialmente viáveis, e futuramente sejam utilizadas em termoelétricas a carvão e gás, bem como em pontos de alta emissão ao redor do mundo.
O governo irá:
  • Comprometer-se a 10% acima do protocolo de Kyoto
  • Aumentar a meta de redução da Noruega de forma a corresponder a um corte nas emissões de 40% até 2020 em relação aos níveis de 1990, caso isso possa contribuir para um consenso sobre um acordo climático ambicioso, em que os grandes países emissores assumam compromissos de redução concretos
  • Que a Noruega, como parte de um acordo climático global e ambicioso em que outros países industrializados também assumem compromissos relevantes, assume um compromisso de redução correspondente a uma redução de 100% até 2030, de forma a nos tornarmos carbono-neutros.
  • Continuar a iniciativa sobre clima e florestas, e dar escala aos esforços até cerca de 3 bilhões de coroas anualmente
  • Apresentar ao parlamento uma avaliação da política climática e das necessidades de alterar políticas públicas, incluindo os planos de ação climática setoriais. Um novo acordo climático internacional torna necessária uma revisão da meta nacional, das políticas públicas e uma nova avaliação de como o conjunto de esforços da Noruega devem ser organizados de maneira a contribuir o melhor possível para a redução das emissões globais de gases efeito estufa
  • Transformar a Agência de Controle de Poluição do Estado no Departamento de Clima e Poluição [hierarquia mais alta na burocracia, abaixo apenas do ministério]
  • Utilizar a legislação sobre planejamento e construção ativamente com vistas a reduzir as emissões dos setores de transporte e construção civil
  • Que a legislação sobre poluição continua a ser uma importante política para a gestão ambiental e climática
  • Combinando o monitoramento de uma estratégia com as proposta ordinárias de orçamento, publicar um relatório/orçamento climático que avalie as consequências das emissões e que relate o desenvolvimento e perfil das emissões, bem como a implementação da política climática
  • Realizar um plano de ação concreto para todos os setores sobre como a sociedade norueguesa deve se preparar para viver com os desafios climáticos, de acordo com as recomendações do Comitê de Adaptação (Tilpasningsutvalget)”
 
Soria Moria II também fala dos direitos do povo Sami. No capítulo sobre economia, o governo diz que “garantirá a viabilidade da criação de renas em equilíbrio com as pastagens, e que isso contribuirá para manter a cultura Sami. O governo avaliará a administração do pastoreio de renas”. Essa auditoria sobre as renas entrou no documento porque há muita reclamação de não-Samis que vivem nas províncias do Norte, de que os Sami não declaram quantas renas possuem, para pagar menos imposto e manter um mercado negro ativo. Há também denúncias de sobre-exploração das pastagens naturais, que podem estar em perigo de extinção ou redução, o que comprometeria a atividade por completo no médio/longo prazo. Não há menção a questões relacionadas à nova legislação de mineração, principal polêmica entre os Sami e o atual governo, mas há a manifestacao de se proseguir o trabalho no comitê Sami de direitos. Segue a tradução do item específico sobre povos indígenas e minorias:

Povos indígenas e minorias nacionais
Os Sami são um povo indígena com demandas internacionalmente reconhecidas de preservação cultural e desenvolvimento. O governo pretende vitalizar a língua, cultura, economia e sociedade Sami, e apoiará as possibilidades de os Sami viverem como um povo para além das fronteiras do país.
O governo pretende contribuir para uma boa estrutura tanto para atividades econômicas tradicionais como postos de trabalho modernos ligados a cultura e tecnologia em áreas habitadas pelos Sami. O governo fortalecerá a língua Sami na Noruega, especialmente através do fortalecimento da responsabilidade do Parlamento Sami e dos municípios.
O governo manterá um sistema de ensino que salvaguarde as necessidades especiais dos Sami. O Parlamento Sami deve ter influência sobre as matérias que sejam importantes para os Sami.

O governo vai:
  • Continuar o plano de ação para língua Sami e o relatório para o Parlamento sobre política Sami
  • Avaliar a possibilidade de que alunos nas regiões Sami possam escolher a língua Sami como segunda língua, e trabalhar para que isso gere mais professores escolares, pré-escolares bem como agentes sociais e de saúde
  • garantir os jornais de âmbito nacional Sami e fortalecer a vida cultural, de forma a aumentar as dotações para o Parlamento Sami
  • apoiar a pesquisa Sami e pesquisa relacionada aos Sami
  • prosseguir no trabalho com o Comitê Sami de Direitos, ao sul de Finnmark, e com o Comitê de Pesca Costeira
  • apoiar iniciativas com foco na língua, cultura e história das minorias nacionais”

Outros pontos interessantes da plataforma Soria Moria II dizem respeito a manutenção dos altos subsídios para agricultura nacional (por exemplo, imposto de importacao sobre laticínios chega a 142%, sobre trigo 210%, sobre carne 240%), demanda principal do Sp, partido dos agricultores, e a adoção de políticas para implementação de sistemas de rastreamento de armas na Noruega. Esse último ponto é uma resposta a crescentes críticas da sociedade sobre a indústria bélica norueguesa, e abriu um espaço de cooperação com a sociedade civil no Brasil, especialmente a ONG VivaRio, parceira da AIN, que trabalha com o tema de desarmamento no Rio de Janeiro e tem contribuído ativamente na discussão do rastreamento de armas.
A terceira etapa recém concluída do jogo político pós-eleitoral foi a aprovação do orçamento para 2010. A manchete (socioambiental) é que o orçamento para a cooperação internacional supera 1% do PIB nacional, feito inédito. Até aí palmas, todo mundo de acordo. As críticas das organizações ambientalistas e de cooperação norueguesas variaram na medida da brasa que sobrou para suas respectivas sardinhas.
A política de cooperação internacional do novo governo está lastreada em uma mensagem ao Parlamento do governo anterior, de 2008, chamada “Clima, Conflito e Capital: a política norueguesa de desenvolvimento em um ambiente de negociação em mudança”. Esse documento orientou a elaboração da política de cooperação que hoje consta da plataforma Soria Moria II, e estabelece a crise financeira e climática como dois dos maiores desafios atuais, sob perspectivas distintas de horizonte de tempo e ênfase. “As mudanças climáticas e a crise econômica ameaçam o que até agora conseguimos alcançar na luta contra a pobreza. Precisamos utilizar a cooperação de forma mais estratégica para conseguir mais na politica de desenvolvimento”, foi o resumo da mensagem feito pelo ministro de meio ambiente Erik Solheim.
A mensagem ao Parlamento resume a questão climática sob diferentes focos: ecossistemas sob pressão, responsabilidade comum mas diferenciada na política climática, energia limpa, florestas, adaptação e contabilidade climática. No item florestas o Brasil é indicado como importante contraparte para cooperação. O raciocínio é que proteger florestas é a forma mais eficiente e barata de reduzir emissões, por isso deve ser priorizada o mais rapidamente possível.
Voltando ao orçamento para a cooperação, a crítica das organizações de cooperação como AIN e Flyktninghjelpen (Ajuda aos Refugiados) é que o governo definiu como cooperação, pela primeira vez, todo o dinheiro destinado a manter o sistema de apoio a refugiados dentro da Noruega, que chega a 10% de tudo, mais do que o destinado à cooperação bilateral com a África. Daí o volume inédito de recursos que ultrapassa 1% do PIB.
Segundo a Flyktninghjelpen, os recursos destinados à iniciativa sobre floresta e clima tampouco deveriam ser computados como cooperação internacional. Para eles, os 2,1 bi de coroas para florestas/clima deveriam sair da conta do Ministério de Meio Ambiente, e os 2,9 bi destinados ao sistema de apoio aos imigrantes/refugiados na Noruega deveriam sair do Ministério do Trabalho e Inclusão.
Por outro lado, houve corte nos valores destinados à cooperação bilateral. O corte total chega a 100 milhões de coroas, dos quais 20 amarga a América Latina. O total destinado a AL é de 220 milhões, dos quais 60 reservados à Guatemala. Sobram 160 milhões de coroas para todos os outros países latinoamericanos. Considerando que o Brasil já está largamente contemplado pela iniciativa clima/floresta, o total da cooperação bilateral deve virar troco de pinga. A Kirkensnødhjelp (AIN) já trabalha internamente com cenários de precariedade de recursos a partir do ano que vem, e planeja uma economia de 11 milhões de coroas em seu orçamento para 2010, dividida em diferentes setores. A Rainforest elogiou o novo governo pelo gordo orçamento para florestas e clima. A Utviklingsfondet critica o governo por não alocar recursos para segurança alimentar e agricultura em países pobres, e por deixar nas mãos do Banco Mundial o recurso para apoiar o aumento da capacidade de resistência e adaptação climática na agricultura. A CARE critica o governo por ter alocado apenas 1% do orçamento em cooperação para questões de gênero; o ForUM – Forum for Utvikling og Miljø (Fórum para Desenvolvimento e Meio Ambiente) critica o governo por não ter alocado grana para questões de acesso a água e saneamento.
O orçamento para meio ambiente dentro da Noruega, embora tenha aumentado 4% em relação ao ano passado, também atraiu críticas das organizações ambientalistas. Natur og Ungdom (Natureza e Juventude) achou que o orçamento para meio ambiente foi tímido, dado o alarde feito pelos partidos da coalizão socialista antes das eleições. O orçamento para ampliação de estradas ainda é três vezes maior do que o destinado às ferrovias, e o total destinado para meio ambiente não chega a um quarto do destinado ao aumento da exploração de petróleo no país. O orçamento para proteção de florestas na Noruega é 18 milhões mais curto.
Norges Naturvernforbundet (Amigos da Terra) e Bellona criticam o arranjo destinado a energia, que chega a 1,8 bi de coroas para as áreas de eficiência energética e energias renováveis, juntas. De acordo com um estudo conjunto feito entre organizações da sociedade e governo, é possível economizar até 12 Tw/h de energia apenas no setor de construção civil até 2020; mas para chegar a isso, seria preciso o governo injetar mais 1,6 bi de coroas/ano apenas em eficiência energética, sem contar energias renováveis.