Há motivos de sobra para afirmar que o verão norueguês de 2011 na Noruega será simplesmente inesquecível. Em julho um psicopata explodiu uma bomba no centro de Oslo e exterminou cerca de 70 jovens e adolescentes reunidos em uma ilha numa convenção da juventude do partido trabalhista (Arbeiderpartiet), deflagrando o episódio mais dramático do país no pós-guerra. Menos de dois meses depois, haveria eleições para escolha dos representantes locais de cada comuna no país. O verão que prometia férias, tranquilidade e mornas eleições locais acabou marcando para sempre as pessoas com a sombra do terror e representou uma guinada política nos rumos dos partidos, coalizões e planos para as eleições para Parlamento e primeiro-ministro em 2013.
Sexta-feira, logo depois do fim do expediente de trabalho nas repartições públicas, no meio do verão, quando quase todos os noruegueses estão de férias, inclusive parlamentares, ministros e jornalistas. É o tempo em que nada de muito importante acontece, em que os jornais têm que encher linguiça com as chamadas "notícias de pepino" (agurknyheter), ou notícias sem sal, sem gosto. Pois este verão foi diferente. No dia 22 de julho, jornais do mundo inteiro noticiavam freneticamente a explosão no quarteirão onde se concentram os ministérios de governo, ocupados por membros do Arbeiderpartiet (Ap), e que de fato matou muito menos gente do que poderia se esperar se tivesse acontecido ao meio dia de uma quarta-feira de abril em Oslo. Cerca de uma hora depois da explosão da bomba em frente aos ministérios, ainda sob espanto geral, pessoas já começavam a especular sobre Al-Qaeda e homens-bomba quando começaram a ouvir no rádio rumores que agora havia um atirador na ilha de Utøya, há cerca de 30 km do centro de Oslo, onde centenas de adolescentes da juventude do Ap estavam reunidas para sua convenção anual, onde conhecem lideranças do partido e se politizam. São dessas reuniões que saem muitos dos jovens que se tornam as futuras lideranças políticas do país.
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A princípio era quase inconcebível que os dois incidentes fossem relacionados, mas ao fim da noite do mesmo dia 22 a polícia anunciava que a explosão no quarteirão dos ministérios e o tiroteio na ilha eram não apenas relacionados, mas obra de um "norueguês étnico", expressão usada para definir noruegueses que não têm ascendência estrangeira. O alvo do ataque terrorista era o próprio governo e o Ap, o partido do primeiro-ministro Stoltenberg. Em questão de horas foi se delineando o perfil do terrorista: trinta e dois anos, solitário, viciado em games de guerra, auto-denominado "cavaleiro do templário", alinhado ideologicamente com o partido de extrema direita, o Partido Progressista (Fremskrittpartiet - FrP), ao qual tinha sido filiado por algum tempo. Sua "missão" era lutar contra o "multiculturalismo" e impedir a "islamização" da Noruega, coisa que o atual governo não tinha conseguido fazer. Por isso era preciso impedir a qualquer custo, segundo o terrorista, que o governo continuasse com sua política equivocada de imigração.
O banzo político pós-22/7: a onda azul está para arrebentar em 2013
A ressaca pós-atentado foi bem administrada pelo primeiro ministro Jens Stoltenberg, que assumiu uma postura de firmeza em defesa da democracia e dirigiu discursos emocionados à população. Stoltenberg descreveu o atentado como uma "tragédia nacional" e conclamou o povo a fortalecer a democracia através de maior participação nas urnas. O slogan do Ap na campanha foi "mostre que você se importa; use seu direito de voto". O povo se uniu em uma onda de solidariedade poucas vezes vista, e todos os líderes dos partidos políticos - inclusive o FrP - declararam solidariedade e apoio ao primeiro ministro e seu partido.
Aqueles que emergiam da névoa de perplexidade já anteviam que as eleições comunais, marcadas para 12 de setembro, seriam no mínimo diferentes. Afinal, tratava-se de um ataque terrorista de crueldade sem precedentes, de um ex-filiado do FrP ao partido de governo Ap, com clara motivação política. Os partidos acordaram postergar o início da campanha eleitoral para depois da cerimônia oficial de tributo às vítimas, um mês depois do incidente. Ou seja, seria uma campanha curta, entre 22 de agosto e 12 de setembro - aliás, um dia depois dos 10 anos do ataque às torres gêmeas nos EUA.
Apenas dez dias antes do atentado em Oslo, dois meses antes das eleições, a mídia alertava que se a eleição fosse naquele dia, o Ap teria a pior votação de sua história, com parcos 25% dos votos. Agora, as expectativas para as eleições eram diferentes. Era unânime que o Ap e o primeiro ministro estavam fortalecidos pelo fato de terem sido o alvo do ataque e pela forma como Stoltenberg liderou o país nos dias que se seguiram ao fato. Havia grande expectativa de um comparecimento inédito da população às urnas (o voto é facultativo), principalmente dos jovens a partir de 16 anos, que pela primeira vez teriam direito de votar e que sentiram mais de perto o drama de Utøya. Outra expectativa é que os partidos de direita sairiam enfraquecidos, principalmente o FrP, de extrema direita, que já vinha em uma curva descendente. Em Oslo, local do acidente, a eleição prometia também uma virada para a esquerda, já que a prefeitura da capital é detida pelo Partido Conservador (Høyre) desde 2007.
As expectativas não se confirmaram totalmente. Ao longo da campanha, pouco se falou do ato terrorista ou das razões que o motivaram, e não houve um embate entre os partidos de direita e de esquerda sobre políticas de imigração. A campanha foi morna, e os partidos evitaram tocar no assunto talvez por temerem perder votos. Apesar do aumento da participação dos jovens nas eleições, não houve um aumento significativo do número de eleitores comparado à eleição passada, apenas cerca de 1,7% a mais. Ninguém arrisca muito tentar explicar o por quê, há quem diga que a campanha foi muito morna, outros que o tempo não ajudou. Embora o Arbeiderpartiet tenha se fortalecido - conseguiu uma adesão de mais de 6 mil filiados depois do incidente, e 31,7% dos votos, 2% a mais do que a última eleição comunal -, acabou com menos votos comparativamente à última eleição para o Parlamento em 2009 (- 3,6%).
O maior vencedor das eleições foi o conservador Høyre, que surpreendentemente conseguiu 28% dos votos totais, quase 9% a mais de votos comparativamente com as eleições comunais passadas, e 10,8% a mais do que as eleições para o Parlamento em 2009. A líder do partido Erna Solberg encheu a boca para declamar, dois dias depois das eleições: "creio que serei primeira-ministra em 2013". O Høyre conseguiu manter o poder em Oslo, com impressionantes 35,7% (10,4% a mais do que a eleição comunal passada), contra 33,1% do Ap, que teve crescimento relativamente menor (3,3% a mais do que a eleição comunal passada), graças em grande parte ao carisma pessoal do atual prefeito Fabian Stang. Ou seja, o aumento da simpatia ao Arbeiderpartiet não foi tão grande quanto se esperava, pelo menos não o suficiente para mudar a cor da cadeira do prefeito da capital.
Um aspecto importante das eleições recentes é o enfraquecimento dos partidos políticos mais radicais no espectro partidário - tanto o Partido Socialista de Esquerda (Sosialistisk Venstreparti - SV) como o FrP na direita. No jogo nacional, a coalizão socialista de governo é formada por Arbeiderpartiet/SV/Sp. A chamada coalizão burguesa (borgerlige) incluía, em 2009, Høyre/KrF/Venstre. FrP era um caso a parte, já que era rejeitado pelas suas contrapartes burguesas menores (KrF e Venstre), e não apoiava nenhuma coalizão da qual não fosse parte (ver http://cabecadobacalhau.blogspot.com/2009/09/burguesia-vai-ficar-rica-um-dia-da.html).
A consequência da perda de votos nos partidos de extrema esquerda/direita significou tanto um fortalecimento dos principais partidos de cada lado do espectro - Arbeiderpartiet e Høyre, especialmente o último - como também dos chamados partidos de centro, o Partido de Centro (Senterpartiet - Sp, ou partido dos agricultores, membro da coalizão governista), o Partido Liberal (Venstre - V) e o Partido Cristão-Democrata (Kristenligfolkpartiet - KrF), os dois últimos membros da coalizão burguesa.
O Arbeiderpartiet, por sua vez, embora ainda seja o maior partido, está vendo o caldo azedar. Assiste a onda azul da coalizão burguesa aumentar, enquanto seus parceiros de coalizão enfraquecem a cada dia. O Sp, partido de centro da coalizão governista, apesar dos 6,7%, caiu 1,3% em relação à última eleição comunal de 2007.
O SV é um caso especial e pode representar a gota d'água de uma reviravolta nas coalizões partidárias. O partido de extrema esquerda do ministro Erik Solheim caiu quase 2% e ficou com 4,1% dos votos, com um pé para fora do Parlamento, já que partidos com menos de 4% de votos não podem ter representação no parlamento. Isso criou uma crise interna sem precedentes no SV, partido com a agenda socioambiental mais progressiva e que pressiona, dentro da coalizão de governo, pelas políticas ambientais mais avançadas. Kristin Halvorsen, ministra da educação e bastião do partido, entregou o cargo de liderança e escancarou a crise interna perante a opinião pública. Agora, o partido mais radical de esquerda da coalizão de governo precisa de um novo líder e novas ideias. Há quem diga que o partido está há tempo demais à sombra do Arbeiderpartiet apenas para se manter no poder e tem aberto mão de suas bandeiras mais importantes, entre elas a questão climática. Muitos vêem a saída do SV da coalizão governista como a única forma de refundar o partido e retomar sua popularidade. Por outro lado, com um pé para fora do parlamento, sair da barca governista pode representar o sumiço definitivo do partido como ator relevante no cenário político.
Com um olho no peixe e outro no gato, o Arbeiderpartiet agora se volta para os partidos de centro, buscando arrebanhar apoio suficiente para manter o poder nas próximas eleições para o Parlamento. O Venstre já declarou apoio ao Høyre e à coalizão burguesa. O cristão KrF ainda está em cima do muro. Uma aliança ocasional entre o Arbeiderpartiet e o KrF na cidade de Trondheim foi a senha para deflagrar um processo de aproximação visando puxar o KrF da aliança burguesa para o lado do Ap. O flerte entre Ap e KrF ainda está no início e o pequeno partido cristão devolve a lisonja afirmando estar aberto a qualquer lance até suas convenções, daqui a um ano. Até lá tudo pode rolar, e se o flerte evoluir para namoro e casamento, a relação pode representar o fio que falta para salvar o Ap da derrota em 2013. Se o KrF decidir por ficar na barca dos burgueses junto com Høyre e Venstre (e eventual apoio do FrP, dentro ou fora da coalizão), a coalizão socialista pode botar a viola no saco e mudar para o banco da oposição, que não conseguirá se sustentar no governo.
Erna Solberg, liderança do Høyre, afirmou que será a próxima primeira-ministra norueguesa
Foto: Aas, Erlend/SCANPIX
Por seu lado, o Høyre, de Erna Solberg, está rindo à toa, e avalia com calma todas as possibilidades de alianças para 2013. Tem garantido o apoio do Venstre e continua apostando que o KrF continuará fiel ao projeto burguês de governo. O FrP continua afirmando que apenas apoiará uma coalizão de governo da qual venha a fazer parte, da mesma forma como fez em 2009, mas agora enfraquecido, pode vir a se abrir para outras maneiras de cooperar com os burgueses. A questão delicada ainda continua sendo que os partidos de centro se recusam a participar de um governo do qual FrP faça parte. Caberá ao Høyre a tarefa de contemporizar as diferenças entre suas contrapartes azuis para estabelecer um balanço que lhe garanta a maioria do parlamento em 2013.
Fontes:
http://www.regjeringen.no/nb/dep/krd/kampanjer/valg.html?id=456491
http://valg.tv2.no/resultater/2011/
http://nrk.no/valg2011/valgresultat/
http://www.dagsavisen.no/innenriks/valg2011/
Dagens Nærinsgliv, Skal styre landet fra 2013, 14.09.2011, p. 8/9